04/09/2014

Gastronomia brasileira: os supernovos e o caminho verdadeiro (I)


 "O caminho verdadeiro segue por uma corda que não  está esticada no alto, mas se estende quase rente ao chão. Parece mais determinado a fazer tropeçar, do que a ser transitável” -
Franz Kafka

I

Numa entrevista que me concedeu em 2006 (e que publiquei na finada Bravo!, nº 108), Adrià afirmou: “As espumas são a coisa menos importante. No meu trabalho, a parte mais importante foi a mediterranização da cozinha espanhola, entre 1987 e 1993. Isso poucos compreenderam fora da Europa. O que fiz, foi enraizar a nova cozinha nas culinárias mediterrâneas, trabalhar a partir delas”.

Em poucas palavras, ele via o valor do seu próprio trabalho no enraizamento cultural, promovido junto com um punhado de outros cozinheiros: a busca coletiva daquela camada subterrânea onde todos os ingredientes pareciam se ligar de modo ancestral, dando coerência ao aparente que ia à mesa. A própria idéia imprecisa de “cozinha mediterrânea” ia ganhava concretude, permitindo um claro reconhecimento.

À época, havia uma onda de redescobertas dos povos espanhóis depois de quarenta anos de silenciamento sob a ditadura de Franco. A música, a pintura, a escultura, a língua e, claro, a culinária, precisavam ser postas de novo em circulação, arejadas depois de tanto tempo de sufoco. Essa retomada, feita com recurso a técnicas modernas, fez do trabalho de Adrià uma obra verdadeira, destinada a marcar época, especialmente por permitir um reencontro dos espanhóis consigo mesmos.  Como dizia Santi Santamaria, os cozinheiros espanhóis foram convertidos em "estandartes da cultura".

E como o trabalho cultural se aliava ao trabalho técnico? Um bom exemplo é a “desconstrução” da paella, um prato que se tornara símbolo culinário da Espanha franquista, teve a sua reapresentação surpreendente em três elementos que, levados juntos à boca, reconstruíam o sabor clássico. A partir de uma base simples, legível e “autenticamente espanhola”,  Adrià demonstrava como concebia a gastronomia: o lúdico, o surpreendente.



Quando imitada mundo afora, a associação entre a revitalização cultural e o desenvolvimento tecnológico propriamente dito se desfez. Não fazia sentido a “mediterranização” fora do Mediterrâneo e, de modo reducionista, o “adrianismo” virou sinônimo de domínio de técnicas específicas. Muitos de nossos cozinheiros se entregaram de corpo e alma a isso e, quando podiam, foram beber na própria fonte - a Espanha. Mas, no encerramento de El Bulli, esse território tornou-se estático. As espumas, que há anos Adrià renegara, tornaram-se o símbolo da ossificação.

Com a técnica é assim mesmo. Ela avança por saltos entremeados por períodos de estabilidade. Nesses períodos, de onde pode vir o encantamento gastronômico? É o que se perguntam, com a cabeça no travesseiro, cozinheiros do mundo todo. E, quando acordam, vão para os seus restaurantes, escolhem as melhores matérias-primas e dão o melhor de si. Tenho visto isso aqui, com clareza, quando vou a um Soeta, a um Lasai, ao Tuju, ao Manu e a alguns poucos mais. Há, em todos eles, um corpo a corpo diário com a qualidade e, quase sempre, os cozinheiros saem vitoriosos.

E porque depositam tanta esperança nos ingredientes, saem à luta pelo melhor. Cultivam seus próprios legumes, inclusive vegetais nunca dantes vistos por aqui; buscam pescadores de confiança que tragam o peixe mais fresco possível e sem que sofram aquela espécie de malhação do Judas que ocorre no trajeto do barco ao restaurante; descobrem artesãos incríveis, escondidos na informalidade ou nas dobras de um sistema de fornecimento altamente seletivo e excludente; fazem eco aos reclamos por sustentabilidade, saudabilidade e assim por diante.

Todo prato é a apoteose de um esforço desse tipo, e os cozinheiros o demonstram com capricho e orgulho. A cherovia - Pastinaca sativa - com dois diferentes queijos ou a bochecha de porco com uma excelente batata doce laranja, ou o excelente camarão da Ilha Grande com tutano e batata doce (Lasai); a brusqueta de tutano com beldroega, o caneloni de pato no tucupi, o namorado na brasa com banana e abóbora (Tuju); o ovo perfeito com canjiquinha ou o extraordinário nhoque de polenta “El Bulli 2007” (em justa homenagem), os magníficos champignons gigantes (Soeta); o uso criativo dos méis de meliponas (Manu) e assim por diante. Não há dúvida de que os jovens cozinheiros desses restaurantes formam a melhor esquadra da gastronomia no Brasil de hoje (ao lado de outros que estão em pesquisas diferentes, como os irmãos Castanho, Felipe Rameh, etc).

Diferente da geração anterior, que se formou “na marra”, a atual geração dos supernovos  foi mais cuidadosa. Pablo Pavon e Barbara Verzola fizerem seu aperfeiçoamento formativo no El Bulli; Ivan Bielawski e Rafael Costa e Silva, no Mugaritz; Manu Buffara, andou pelos EUA (Alinea) e foi dar com os costados no NOMA, de René Redzepi. Todos observaram o monstro da cozinha pelas entranhas e  conheceram os respectivos processos técnicos e criativos. O que aprenderam está dito no que fazem em seus restaurantes. A criatividade de cada um é visível.

O que me pergunto é: se há tanto da escola de Adrià nas suas cozinhas, onde foi parar o exemplo da “mediterranização”, ou melhor - no que ela se trasformou?

Quando se diz que, em gastronomia, o Brasil é a “bola da vez” não significa que é a vez daqueles que aprenderam corretamente as lições técnicas modernas. Quer dizer, sim, que a audiência nacional e mundial estão receptivas para uma gastronomia reconhecível como brasileira, moderna - como são a japonesa, a peruana e assim por diante. Não se trata de uma “volta às origens”, mas de saber até onde se pode ir modernamente, revisitando as tradições populares. E o que temos a apresentar nesse sentido?

O próprio Adrià, na entrevista já citada, dizia: “Em relação ao Brasil, eu me refiro à Amazônia. Quando os seus produtos forem explorados, haverá um impacto tão grande quanto no período das grandes navegações, da descoberta das Américas (...). O Brasil é um grande mercado a explorar. Há frutas e verduras silvestres, e é de grande importância que elas possam ser cultivadas. A sensação “elétrica” do jambu, por exemplo, vem da Amazônia... mas foram necessários cinco séculos para essa sensação ser descoberta e ingressar na gastronomia. E é preciso produção continuada. Não há no Brasil empresas especializadas que se dediquem à investigação e comercialização das frutas da Amazônia”. 

Em poucas palavras, Adrià nos vê como fornecedores de matérias-primas para o mundo europeu, como sempre foi o papel do Novo Mundo desde a montagem do sistema colonial. Mas não é esta a linha de evolução que mais interessa aos brasileiros. Gostaríamos de ter uma culinária de corpo inteiro.

Quando o Peru exporta o ceviche, o que ele dispõe para a gastronomia mundial não são seus peixes, mas a inteligência e a criatividade culinárias de seu povo, reinterpretada aqui e ali.  E a nossa pretensão deve ser mais ou menos essa. Isso exige um mergulho na cultura, na diversidade culinária do país, de modo a podermos construir um discurso estruturado que nos capte por inteiro, isto é, nas maneiras como utilizamos os nossos ingredientes.

Em termos de diversidade, há uma cozinha caipira (paulista e mineira), como há uma paraense, uma sertaneja, e assim por diante, que não estão suficientemente modernizadas nos restaurantes da nova geração de cozinheiros e, portanto, há ainda um longo caminho a percorrer. Afinal de contas, precisamos responder: quais os benefícios das técnicas modernas para a nossa própria cultura alimentar? Como promover o reencontro da culinária popular brasileira com o nosso tempo, despindo-a de qualquer folclorização? Os valores tradicionais que a revestem já não servem para sustenta-la em nossas mesas.


Foi a esclerose político-cultural do franquismo que afastou as cozinhas basca, catalã etc das mesas dos restaurantes. Uma classe média medíocre, conservadora, se aferrava à mesmice cultural (e culinária) que coube à geração de Adrià romper. Entre nós, ao contrário, uma classe média novidadeira parece desejar a experimentação e, por isso, dá as costas à tradição.

Por exemplo, a cozinha caipira - do Vale do Paraíba e do Rio Doce - praticamente desapareceu. O caipira é um tipo humano ridicularizado pela moderna cultura de massas e, assim, sua culinária carece de sentido presente, apesar da sua riqueza e, muitas vezes, delicadeza e refinamento.

O caminho pela frente é equivalente àquela “mediterranização” que fez da cozinha espanhola um verdadeiro capítulo da culinária mundial. Sendo a “bola da vez” - mas como Augusto Matraga - ainda esperamos nossa vez e nossa hora como país que tem uma culinária que quer persistir. E nunca é demais pedir àqueles que já fizeram uma trajetória brilhante até aqui que sigam pelo caminho verdadeiro, assumindo-se como “estandartes da cultura” que não se limita à técnica e a engenhosidade individual.

(continua)

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