12/10/2017

Afirmação do artesanato alimentar e desobediência civil


Muitos são os acontecimentos conflituosos que emergem no terreno da alimentação no Brasil dos últimos tempos, destacando-se a luta surda visando a convivência de regimes de alimentação tradicional ou modernos que se opõem à lógica do agribusiness e da grande industria, naquilo que esta moldou a legislação que rege o setor por inteiro. 

Esta não é uma questão exclusivamente nacional, nem mesmo recente: ao menos desde o século XIX se pode identificar essas tensões em vários países. Portanto a luta pela afirmação de regimes alimentares alternativos ao main stream é uma luta permanente, à qual não podem se furtar os trabalhadores e demais interessados na cadeia alimentar.

Começando pela agricultura, temos que a mesa do brasileiro é suprida especialmente pelos produtos da agricultura familiar que tem sido onerada, nos últimos tempos, pelo corte impiedoso dos financiamentos públicos. Assim, mais do que nunca ela precisa se articular com o mercado para poder sobreviver, contornando o peso da ausência do Estado.

Dessa perspectiva tornam-se mais graves as restrições da legislação sanitária ao comércio de bens produzidos no campo, notadamente os de origem animal (frango caipira, embutidos, queijo de leite cru, etc) - o que joga essas atividades na mais completa ilegalidade. 

São simplesmente inadmissíveis, como se vê em filmes disponíveis na net,  que agentes do Estado apreendam caminhões de queijos artesanais, inutilizando a carga, jogando sobre elas creolina. Às barreiras legais somam-se as da truculência à sombra da lei (que se saiba nenhuma lei determina essa violência, nem se conhece ações públicas de punição desses excessos). 


Uma pressão grande se faz para a alteração dos marcos legais do artesanato. Só com muito custo consegue-se alguma coisa, como um relaxamento de normas pontuais sobre o queijo Canastra, ou a edição de novas que parecem se “abrir”- como o caso da Resolução SAA - 52, de 3-10-2017, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo - que é um regulamento para a comercialização do mel de abelhas Meliponiae, mantendo, porém, a exigência de pasteurização que destrói muitas qualidades desses meles.

Tudo isso mostra como a legislação adequada à indústria tornou-se um obstáculo ao desenvolvimento virtuoso do artesanato alimentar, colocando o Estado como inimigo do progresso do pequeno produtor. Situação que se agrava pela superposição de instancias públicas com a mesma finalidade.

As legislações estaduais e municipais não raro acrescem dificuldades de operação à legislação federal, já em si inadequada. E chega-se ao absurdo de que algo que é bom para o consumo num estado da federação, deixa de sê-lo ao atravessar uma fronteira política. Fronteiras sanitárias não se confundem com divisões administrativas.

São aspectos da crise que indicam a necessidade de um completo remodelamento do lugar do artesanato alimentar na sociedade, e não correções tópicas. A premissa não é que existem “imperfeições” a serem sanadas mas, sim, que a democracia requer o pluralismo de regimes alimentares que possam conviver sem que os marcos legais de um sejam impostos aos demais, necessitando ser construído o espaço institucional de todos eles.

 Isso exige reeducação do próprio  Estado, para que perceba que higiene não é higienismo; que o controle eficaz de produtos - através de análises laboratoriais mais frequentes - substitui a imposição de processos únicos para todos os produtores; que a própria história do artesanato alimentar retém lições deliberadamente desprezadas (quais os casos de intoxicação por queijos? por mel não pasteurizado?), que podem vir para a luz do dia através da delimitação de origem, etc. 

O Estado precisa estar atento, também, aos riscos alimentares advindos da indústria. Com transparência, deve alertar a população a respeito  dos produtos sob suspeição: legumes e verduras com altos teores de agrotóxicos; criação de peixes em cativeiro, etc. Assim como adverte sobre os riscos do fumo, deve advertir sobre os riscos do consumo de salmão de granja, por exemplo. 

Sem essas mudanças, continuaremos numa luta surda entre realidades tão diversas, com prejuízos de toda ordem, inclusive para a saúde pública. É preciso desenvolver uma legislação que, antes de ser combatida, gere nos brasileiros uma nova “vontade de obedecer”. Sem essa nova vontade, inclusive, a única coisa que prospera é a corrupção como forma de contornar obstáculos.

É no quadro de inflexibilidade legal atual que as formas de luta muitas vezes apontam para a necessidade da desobediência. A desobediência civil tem sido, comprovadamente, uma tática eficaz de luta, especialmente nas democracias, como a norte-americana, pressionando o Estado para rever normas rechaçadas pela população. Foi assim, e em aliança com mobilizações populares, que se dilataram as fronteiras dos direitos civis nos EUA. 

A quadra política que recomenda essa tática é o interesse crescente dos consumidores, inclusive aqueles com ideologias estruturadas sobre os benefícios do artesanato alimentar, em escapar das armadilhas da grande indústria de alimentos. Mas é claro que a desobediência civil não é um ato de rebeldia ou inconformismo individual. Precisa ser tática adotada pelos setores organizados e interessados nos resultados esperados. Nada mais patético do que a revolta de alguém “pego em flagrante” desobedecendo uma norma, sem que essa desobediência tenha um alcance político planejado. A passagem do vitimismo à ação coordenada, afirmativa, é o que se exige por agora.

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